Niède Guidon morreu um dia antes do aniversário de 46 anos do Parque Nacional Serra da Capivara

A arqueóloga Niède Guidon morreu nesta terça-feira (4), aos 92 anos, um dia antes do aniversário de 46 anos do Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, criado em 5 de junho de 1979. A coincidência é simbólica. Foi ela quem idealizou, lutou e dedicou a vida à criação e à manutenção do parque, hoje reconhecido como Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco.

Em razão do falecimento da arqueóloga, as comemorações do aniversário do parque foram adiadas. Em breve, uma nova data será informada pela direção do espaço.

Niède chegou ao Piauí com um trabalho de forte caráter social e revolucionário na época. Ao longo de sua trajetória no sertão piauiense, ela ajudou muitas mulheres a romper ciclos de violência, conquistar autonomia financeira e ocupar espaços de trabalho antes dominados por homens. Como mulher independente e líder de equipes em um contexto conservador, ela inspirou para toda uma geração de piauienses.

“A relevância da Niède passa por muitos lugares que ultrapassam, na verdade, a arqueologia. A Niède fez uma transformação, uma revolução com as mulheres daquela região. Muitas sofriam violência doméstica. E a presença dela lá, como uma mulher independente que contratava os homens, isso já foi muito inspirador”, contou a jornalista Adriana Abujamra, autora do livro Niède Guidon: Uma arqueóloga no sertão.

Adriana relata que Niède era uma mulher que acreditava na força das outras mulheres e que prezava por um trabalho bem feito, com responsabilidade e compromisso.

Não aceitava desleixo. Por isso, à frente do parque, ela decidiu trocar os guardas das guaritas do Parque Nacional da Serra da Capivara por mulheres. Os homens que ocupavam os postos até então eram considerados bagunceiros, abandonavam as funções e não tratavam o local com o cuidado necessário.

“Uma vez ela chegou e tinha um com cueca pendurada no varal, onde os turistas entravam. E aí ela foi falar com um deles e e ele disse, ‘ah, você precisa então contratar uma mulher, eu tô aqui pra cuidar do parque.’ Ela falou, ‘pois então, tá bom.’ Ela contratou mulher, mas não pra faxinar, né? Pra pegar o lugar deles.”

PIAUÍ NO MAPA 

Além do impacto social, o trabalho de Niède colocou o Piauí no mapa da arqueologia mundial. Um dos estados mais pobres do Brasil passou a ser reconhecido internacionalmente por abrigar um dos mais importantes sítios arqueológicos do planeta.

O bioma da caatinga, muitas vezes visto como terra esturricada e infértil, ganhou nova interpretação nas palavras e ações da arqueóloga. Para ela, a resiliência da vegetação nordestina refletia a própria persistência necessária para manter vivo o Parque Nacional da Serra da Capivara ao longo das décadas.

“Tem uma resiliência que muito se assemelha à resiliência da própria Niède, porque pra manter aquele parque durante tantos anos não foi nada fácil. Ela todo ano ameaçava que ia largar tudo e ir embora pra Paris, mas ela continuou no Piauí até o final.

Foi também por insistência de Niéde que a primeira universidade pública federal no interior do Nordeste foi implantada. A criação da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), com campus em São Raimundo Nonato, onde fica o parque, foi uma das vitórias da arqueóloga no campo da educação e do desenvolvimento regional.

O legado de Niéde também toca em temas delicados. A criação do parque exigiu a remoção de comunidades tradicionais que habitavam a área. Embora a relação com o povo Zabelê e outros grupos tenha sido marcada por conflitos, a jornalista ressalta que, sem o trabalho de Niéde, talvez a fauna, a flora e as pinturas rupestres da região sequer existissem hoje.

“Talvez se não tivesse sido o trabalho dela… talvez não. Acho que é muito a chance de que aquilo ali não estivesse vivo ainda. Desde as pinturas nas paredes, como a fauna e a flora“, disse a escritora.

Para Adriana Abujamra, conhecer Niède Guidon e visitar a Serra da Capivara é compreender o que significa viver em função de um propósito. “Acho que é importante que as pessoas realmente conheçam quem foi a Niède e se voltem e vão visitar o parque, que é a vida dela entranhada nesse lugar.”

CHEGADA DE Niède ao Piaui

Formada em História Natural pela USP e doutora pela Universidade de Paris, Niède iniciou suas pesquisas na região da Serra da Capivara ainda nos anos 1970, mas seu interesse pelo local surgiu bem antes. Em 1963, ouviu falar das pinturas rupestres espalhadas pelo interior do Piauí e tentou visitar o local dirigindo um Fusca, sem sucesso. No ano seguinte, exilou-se na França para escapar da ditadura militar brasileira, e só em 1970 conseguiu, enfim, ver de perto o que tanto a intrigava.

O que encontrou ali não era comum. E ela sabia disso. Os vestígios arqueológicos encontrados indicavam uma ocupação humana muito anterior àquela proposta pela Teoria de Clóvis, até então dominante, que apontava a chegada do homem às Américas pelo Estreito de Bering há cerca de 13 mil anos. Niède defendia que a presença humana na Serra da Capivara podia ter começado há 60 mil anos, talvez até 100 mil. A tese provocou polêmica e enfrentou resistência, mas ela não recuou. Décadas depois, novos achados no Chile e na Califórnia reforçariam as hipóteses que ela sustentava desde os primeiros anos de escavação.

Fonte: Meio News