As eleições de 2024 abrigaram a suspeita de uma fraude envolvendo pequenos e médios municípios de vários estados do país, em um possível esquema até agora pouco visível na lista dos malfeitos eleitorais: a compra de votos em massa por meio da transferência coletiva e ilegal de títulos de eleitores entre uma cidade e outra.
A Folha mapeou nos últimos meses na Justiça Eleitoral e na Polícia Federal prisões, operações e investigações que se espalharam pelo país em decorrência de transferências em bloco de domicílio eleitoral, o que em algumas cidades pode ter sido determinante para a eleição fraudulenta de prefeitos e vereadores.
Dados colhidos pela Folha no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) mostram que 82 municípios a grande parte deles com menos de 10 mil habitantes viram seu eleitorado crescer entre 20% e 46% só com a transferência de títulos de outras cidades.
Devido a isso, 58 dessas cidades vivem a inusitada situação de terem mais eleitores formais do que a população residente.
Considerando os municípios com aumento de 15% dos eleitores com as transferências de títulos, o número de cidades sobe para 229.
Em Elesbão Veloso, cidade do Piauí que viu a sua população encolher 6% de 2010 a 2022, mas o eleitorado oficial subir 8% mais um exemplo no qual o número de eleitores superou o de habitantes.
Em maio, a Justiça cancelou sete transferências de votantes que apresentaram como prova de residência contas de luz falsas.
Em agosto, a PF deflagrou a Operação Águas Rasas devido à suspeita de fraude em 126 transferências de título para a cidade, todas por meio de comprovantes falsos, alguns emitidos pela empresa de água e esgoto do estado. De acordo com a polícia, o suspeito de produzir os documentos era um servidor público e candidato a vereador. Na cidade, Ronaldo Barbosa (PP) derrotou Dr. Cleriston (PT) por diferença de 712 votos.
Um caso exemplar ocorreu em Fernão, a 400 km de São Paulo. A pequena cidade tem 1.656 moradores, de acordo com o Censo de 2022, o que inclui crianças e adolescentes que não votam. O eleitorado oficial, porém, é maior do que toda a população, 1.754, graças a um incremento de 17% só com a transferência de títulos.
O candidato Bill, do PL, foi eleito prefeito com diferença de apenas 1 voto em relação ao atual chefe do Executivo, Zé Fodra (PSD). Foram 522 votos a 521.
Bill, cujo nome é Eber Rogério Assis, é alvo do Ministério Público justamente sob a acusação de ter patrocinado de forma fraudulenta a transferência de mais de 60 eleitores de outras cidades para Fernão. A Promotoria Eleitoral entrou com ação para impedir sua posse e, em 22 de outubro, o juiz Felipe Guinsani suspendeu de forma liminar a diplomação.
Segundo o juiz, o eleito, que é vereador e veterinário da Casa da Agricultura de Fernão, “promoveu uma verdadeira arregimentação de eleitores, proporcionando-lhes facilidades para transferência fraudulenta de títulos eleitorais”.
“Isso ocorreu em um município de pequeno porte, com apenas 1.754 eleitores aptos a votar, o que demonstra a potencialidade da conduta para influenciar o resultado das eleições.”
A liminar foi cassada dias depois pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de São Paulo sob o argumento de ser necessário o direito à ampla defesa. A Folha entrou em contato com a defesa de Bill, mas não houve resposta. Em rede social, ele disse que é alvo de acusações infundadas e injustas.
Outro caso ocorreu em Divino das Laranjeiras, no leste de Minas Gerais. A cidade tem 4.178 habitantes, de acordo com o Censo de 2022, tendo encolhido 15,4% em relação ao levantamento anterior. No caso do eleitorado oficial, porém, ocorreu o inverso: um crescimento de 15,6%, chegando a 4.968 pessoas.
O TRE de Minas Gerais informou que há processos em segredo de Justiça sobre aliciamento de eleitores para a cidade. A três dias da eleição, o Ministério Público ingressou com pedido de anulação da transferência de 38 eleitores. “Os impugnados se envolveram em uma trama ardilosa em que interpostas pessoas, com o nítido propósito de burlar o sistema eleitoral, cooptaram eleitores”, escreveu a promotora eleitoral Mariana Cristina Pereira Melo, sem citar o nome do candidato.
Na manhã seguinte, 4 de outubro, a Polícia Federal deflagrou a Operação Sufrágio, afirmando que o esquema envolveu a transferência de cerca de mil títulos. No mesmo dia, a Justiça cancelou o registro de apenas três eleitoras que confessaram a fraude. Os demais puderam votar. Em Divino, Reinaldo Romualdo dos Santos (MDB) venceu Emanuel Antonio Siqueira (Republicanos) por 268 votos de diferença.
O estado com o maior número de cidades que elevaram em mais de 20% o número de pessoas aptas a votar é Goiás. Foram 19, entre elas Guarinos, a campeã em crescimento (46%), e Davinópolis, onde o eleitorado oficial (4.405) é mais do que o dobro do que toda a população contada pelo IBGE.
O TRE de Goiás disse, em nota, que há investigações da Polícia Civil em Aragoiânia e da Polícia Federal em Santo Antonio do Descoberto. Houve ainda pedido de revisão do eleitorado em alguns municípios, mas eles foram negados por falta de indícios de irregularidade.
O órgão afirmou também que a revisão do eleitorado baseado em distorções de natureza estatística (mais eleitores que moradores, por exemplo) é de competência exclusiva do TSE que foi procurado pela reportagem, mas não se manifestou.
Além das ações judiciais, eleitores em vários estados foram presos em flagrante tentando transferir o título com documentação falsa. Em Correntina (BA), por exemplo, a juíza eleitoral da região chamou a polícia em abril após duas pessoas supostamente tentarem promover a fraude no cartório eleitoral.
Em novembro, reportagem do Fantástico, da TV Globo, mostrou indícios de que houve mercado ilegal de eleitores em Mangaratiba, balneário do Rio de Janeiro que também ganhou milhares de novos votantes.
Para transferir seu local de votação, o eleitor precisa comprovar vínculo residencial, afetivo, familiar, profissional, comunitário ou de outra natureza com a nova cidade. Quando há a burla, ela geralmente é enquadrada nos artigos 289 e 290 do Código Eleitoral, com penas de 2 a 5 anos de prisão mais multa.
Suspeita de fraude por transferência de eleitores
Qual é a suspeita
A Justiça Federal e a Polícia Federal investigam as transferências em bloco de domicílio eleitoral de votantes de cidades pequenas e médias, o que pode ter sido determinante para a eleição de prefeitos e vereadores.
Exemplos investigados
Em Fernão, a 400 km de São Paulo, o candidato Bill (PL) foi eleito prefeito com diferença de apenas 1 voto em relação a Zé Fodra (PSD): 522 votos a 521. O eleitorado oficial da cidade cresceu 17% só com a transferência de títulos, o que fez com que o número de eleitores aptos fosse maior do que o total de moradores.
Outro caso ocorreu em Divino das Laranjeiras, no sul de Minas Gerais. A cidade tem 4.178 habitantes, segundo o Censo de 2022, tendo encolhido 15,4% em relação ao levantamento anterior de 2010. No caso do eleitorado oficial, porém, ocorreu o inverso: um crescimento de 15,6% em relação à eleição anterior, chegando a 4.968 pessoas.
Como seria a fraude
Para transferir seu local de votação, o eleitor precisa comprovar vínculo residencial, afetivo, familiar, profissional ou comunitário com a nova cidade. Segundo as investigações, há indícios de uso de contas de luz, água e esgoto como comprovantes de residência falsos emitidos por servidores públicos.
Qual é a punição para os eleitores
Caso comprovadas as irregularidades, os eleitores podem ser enquadrados nos artigos 289 e 290 do Código Eleitoral, com penas de 2 a 5 anos de prisão mais multa.
Mais casos no Piauí
No Piauí, a Polícia Federal investiga esse tipo de fraude em pelo menos três cidades, Elesbão Veloso, Picos e Bocaína, onde foram deflagradas operações antes e após a realização do pleito. No último dia 04, a Polícia Federal deflagrou a Operação Sinais, que teve por objetivo combater crimes de fraude em transferência de domicílio eleitoral, praticados nas eleições municipais de 2024. Na ação, foram cumpridos quatro mandados de busca e apreensão nos municípios de Bocaina/PI e Picos/PI. As ordens judiciais foram expedidas pelo IV Juízo das Garantias, em Picos.
Ao longo da apuração policial, constatou-se que, além de Bocaina, a fraude ocorreu nos outros quatro municípios que compõem a 28ª Zona Eleitoral, totalizando cerca de 450 requerimentos fraudulentos. Todos os pedidos foram cancelados judicialmente e o atendente responsável, demitido.
A investigação apurou que um terceirizado do Cartório da 28ª Zona Eleitoral, em associação criminosa com pessoas ligadas a partido político, advogado e candidato a vereador, teria operacionalizado a transferência indevida de domicílio eleitoral de 73 eleitores para Bocaina, cidade piauiense com cerca de seis mil eleitores aptos a votar no pleito deste ano.
Os requerimentos de transferência de domicílio eleitoral (RAE), solicitados via internet ou de forma presencial, foram processados e deferidos. Todavia, após análise, constatou-se que não foram anexados documentos pessoais ou comprobatórios de vínculo entre o respectivo município e os eleitores, bem como não havia fotografias e assinaturas dos requerentes.
Ao longo da apuração policial, constatou-se que, além de Bocaina, a fraude ocorreu nos outros quatro municípios que compõem a 28ª Zona Eleitoral, totalizando cerca de 450 requerimentos fraudulentos. Todos os pedidos foram cancelados judicialmente e o atendente responsável, demitido.
Os investigados, inclusive os eleitores, poderão ser responsabilizados pelo cometimento dos crimes de alistamento fraudulento, falsidade ideológica para fins eleitorais, inserção de dados falsos em sistema de informação e associação criminosa.
No mês de agosto, a Polícia Federal realizou a Operação Águas Rasas, que investiga a transferência irregular de mais de 120 títulos eleitorais no município de Elesbão Veloso, a cerca de 160 km de Teresina. O principal alvo da operação é um candidato a vereador, que é funcionário terceirizado da Agespisa, Flávio Jose, conhecido como Pinto Moura (PT) que concorre à reeleição.
De acordo com a PF, foram cumpridos três mandados judiciais de busca e apreensão na cidade. A investigação, iniciada neste mês, apura um esquema de transferência fraudulenta de domicílio eleitoral para Elesbão Veloso, realizado por meio da apresentação de comprovantes de residência ideologicamente falsos.
Fonte: Cidade Verde, por Folhapress / Ranier Bragon, Demétrio Vecchioli e Camila Mattoso