Diferenças regionais revelam abismo da desigualdade de renda no Brasil

Há dois anos e meio, o arquiteto Sergio Viana, 42, trocou Belo Horizonte (MG) por uma casa em um condomínio na vizinha Nova Lima. Seu escritório foi transferido para o local, onde há supermercado e farmácia e ficam também o trabalho da mulher e a escola bilíngue dos filhos.

Com renda superior a R$ 6.000, a família seguiu a trajetória de grande parte dos moradores.

A mais de 2.000 quilômetros dali, numa realidade bem mais distante, vive a dona de casa Maiane Araújo, 23. Ela concluiu o ensino médio, mas não conseguiu emprego e, para criar sozinha o filho de três anos, depende essencialmente dos R$ 180 do Bolsa Família.

O benefício é a principal fonte de renda de 19% dos moradores de Fernando Falcão (MA), onde ela mora –mais de 40% da população pediu o auxílio emergencial do governo durante a pandemia.
Enquanto o município mineiro tem a maior concentração de ricos do Brasil, com renda estimada de R$ 6.200, a cidade maranhense tem o menor rendimento médio do país, de R$ 20, e onde só 0,71% declara Imposto de Renda –em Nova Lima, 30,5% declaram o IRPF (Imposto de Renda Pessoa Física).
Os dados são de levantamento da FGV Social com base no IRPF de 2018.

A alta renda na cidade mineira é impulsionada pelos moradores de condomínios de luxo que trocaram Belo Horizonte pela cidade vizinha listando entre os prós clima mais fresco e segurança. Nova Lima é vista como uma espécie de extensão da capital.
“Mais de 20 casais amigos meus vieram para cá. Nos últimos cinco ou seis anos, muita gente se mudou”, diz Fabi Lopes, 42, que tem uma agência de marketing no mesmo bairro onde vive, o Vila da Serra. A renda dela e do seu círculo social está acima da média apontada pela FGV Social.

No condomínio de Sergio, um dos 47 na cidade, onde os lotes valem até R$ 1,3 milhão e as casas variam de R$ 900 mil a R$ 10 milhões, a oferta anda escassa. O escritório dele tem atualmente 20 projetos –metade de clientes que apareceram em meio à pandemia. “Só vejo prós aqui, não vejo contras”, diz.
Com cerca de 96 mil moradores e extensão maior que a da capital, a cidade possui ilhas habitacionais com condições sociais bem diferentes entre si, segundo as professoras Heloísa Soares de Moura Costa e Jupira Gomes de Mendonça, da Universidade Federal de Minas Gerais. As mineradoras, como a Vale, detêm a maior parte das terras.
Enquanto os condomínios de luxo ficam em áreas afastadas, a população de menor renda se concentra na região central, que ainda preserva herança da mineração do ouro. Hoje, o setor representa 18,3% das receitas do município. Cerca de 40% do ISS (Imposto Sobre Serviços) sai das mineradoras.

A prefeitura tem feito campanhas para que os moradores mais ricos passem a emplacar seus carros em Nova Lima, a fim de gerar receitas de IPVA, e mudem o título de eleitor para a cidade.
A maioria dos que residem em condomínios quase não frequenta a região do centro. “Temos trabalhado para tirar essa barreira, não só por parte dos moradores dos condomínios mas do nova-limense”, diz o prefeito Vitor Penido (DEM), que está no sexto mandato.
O motor do cenário do terceiro lugar nas rendas mais altas do país –e líder em patrimônio acumulado– é um pouco diferente.

Localizada em posição estratégica, na divisa com Mato Grosso do Sul e próxima a São Paulo e Minas, a goiana Aporé tem renda média elevada, de R$ 5.200, graças à agropecuária.
Com população estimada em 4.200 habitantes e cerca de 25 mil cabeças de gado, além de plantações de cana-de-açúcar e soja, o município está próximo a Rio Verde e Jataí, que ocupam posição de destaque nacional no setor, atraindo exportadores.
Segundo o secretário-geral de governo, Adriano da Rocha Lima, há uma tendência natural de crescimento nos últimos anos, reflexo da expansão do entorno que não oferece tantas áreas livres. “O que acontece em Aporé é efeito do crescimento econômico daquela região”, afirma.
Para o agrônomo e consultor pecuário Rogério Banin, que também atende clientes de outros estados, Aporé e região são a bola da vez.

“É uma área muito estratégica. Os preços das terras já estão de médios a altos, há muitos fundos de investimento buscando a região”, aponta.
A agropecuária também é a principal atividade em Doutor Ulysses, cidade paranaense de cerca de 5.500 moradores, na divisa com São Paulo. A ligação com o estado vizinho começa pelo nome que homenageia o deputado paulista Ulysses Guimarães, presidente da Constituinte de 1988.
Porém, ao contrário de Aporé, Doutor Ulysses aparece com o menor rendimento médio mensal declarado, de R$ 1.911. O dado parece não assustar o empresário Rildo Soares Fagundes, dono de um hotel e um restaurante no local.

“Aqui não tem uma indústria, não tem emprego, então tem uma renda muito pequena”, explica.
Natural do Espírito Santo, há dez anos ele abriu uma lotérica na cidade, mas fechou o negócio dois anos depois, após um assalto. Sem dinheiro circulando, não há atrativo para os bancos e, atualmente, os habitantes de Doutor Ulysses dependem do transporte da prefeitura para chegar às agências mais próximas, na vizinha Cerro Azul, distante cerca de 33 quilômetros.
A dificuldade de acesso também trava o desenvolvimento. Até hoje, para chegar à cidade, só por estradas de chão. O terreno montanhoso próximo à serra do mar também impossibilita alguns tipos de cultivo, apesar de a zona rural comportar 75% dos moradores.
O setor de serviços, o comércio e a indústria de transformação completam a lista de principais atividades. Mas o emprego ainda é escasso, o que levou 35% dos moradores a requisitar auxílio emergencial em tempos de pandemia. Cerca de 14% da cidade vive do Bolsa Família.
A pobreza em Doutor Ulysses é problema antigo e atinge todo o Vale do Ribeira, desafiando prefeituras e governo do estado. A nova tentativa é investir na industrialização de produtos que têm gerado renda na região, como mandioca e poncã.

“Temos que agregar valor à produção local porque, sem condições, a tendência é que as pessoas deixem a cidade”, diz o secretário estadual de Agricultura, Norberto Ortigara. Ao menos 500 pessoas já abandonaram o local nos últimos anos, segundo o IBGE.
Movimento inverso segue a cidade maranhense de Fernando Falcão, cuja população mais que dobrou em dez anos e hoje é de cerca de 10,5 mil. O dinheiro, porém, ainda passa longe, e a cidade tem a menor renda média (entre declarantes ou não) do país.
O município foi criado há 23 anos, desmembrado de Barra do Corda, de onde migrou o professor Elivan de Souza, 43. Alfabetizado apenas aos 11 anos, ele hoje dá aulas em escolas locais. Apesar de ter testemunhado alguns progressos, como na formação de docentes, ele ainda vê na área da educação os grandes problemas da cidade.
“Ainda falta muito, a maior parte da população mora em povoados distantes geograficamente e com estradas muito ruins para circular”, aponta.
Mesmo para quem tem uma fonte de renda, o salário é baixo, até no funcionalismo. Excluindo o prefeito, que ganha R$ 15.000, e o vice, com R$ 5.000, os 493 empregados da prefeitura de Fernando Falcão recebem, em média, R$ 1.669,28, sem considerar os descontos.

O governo do Maranhão ainda atribui a pobreza à pouca diversificação da economia local. A agropecuária e a criação de peixes ocupam quase 86% da população, mas a produção é quase toda voltada para consumo próprio. A ocupação de 71% da área do município por terras indígenas colabora para o cenário tomado pela agricultura de subsistência.
Há ainda os que sobrevivem de empregos informais, como o pedreiro Carlos Oliveira Sobral, 30. Ele recebe em média R$ 100 por dia de serviço, muito mais que a média do município. Ele acredita que, apesar da falta de vagas, não há escassez de trabalho na cidade.
“Já fui para a cidade grande, lá vejo mais falhas do que aqui. Eu não paro [de trabalhar], só nos finais de semana. Para mim, não é difícil, por que para os outros é?”

Fonte: Folha Press