
O mundo vê agravar-se ano a ano a situação de pessoas empurradas para a miséria, uma decorrência de descuido absoluto causado por um sistema capitalista que está em estado crítico, mas continua seu processo de acumulação de riqueza nas mãos de uns poucos e do comprometimento insustentável, uma real depredação dos recursos naturais disponibilizados pelo planeta Terra, fazendo a água desaparecer em muitos lugares e tornando os recursos energéticos cada vez mais caros.
Mais do que em qualquer momento desde o fim da Segunda Guerra Mundial, há hoje em dia um sentimento generalizado de que o capitalismo não pode prosseguir na forma em que foi até hoje praticado. Estima-se que, só em 2020, o espantoso universo de 115 milhões de pessoas tenham sido jogadas na miséria, uma condição firmada por critérios do Banco Mundial de extrema pobreza, sujeita a uma renda diária de cerca de US$ 1,9 (em torno de 10 reais por dia).
Mundo Cidadão
É natural que a gigantesca crise sanitária, trazida pela Covid-19, fez agravar essa situação no mundo inteiro, mas esse insuportável estado de coisa vem sendo construído desde que acabou o último grande conflito mundial, quando o capitalismo se firmou, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, como forma garantidora de progresso. Uma prosperidade, evidente que, salta aos olhos, só chegou aos cofres de poucos privilegiados, detentores reais de todo o poder.
Um estudo da Oxfam, apresentado ao Fórum Econômico Mundial de Davos, no ano passado, revela que enquanto 115 milhões acabam de mergulhar na miséria, apenas 2.153 bilionários do mundo têm mais riqueza do que 4,6 bilhões de seres humanos, ou cerca de 60% de toda a população mundial. A desigualdade global está em níveis recordes e o número de bilionários dobrou na última década.
Mundo Cidadão
No Brasil, conforme dados das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios e Contínuas (Pnads), no último ano, mais de 12,8% das famílias brasileiras passaram a viver com menos de R$ 246 ao mês (R$ 8,20 por dia), condição definida pela FGV como de pobreza extrema. Na projeção da FGV Social, são 27 milhões de pessoas nesse estado.
A propósito disto que estamos tratando, o nosso imenso José Saramago, no seu corajoso romance “Ensaio sobre a Cegueira”, criou a expressão “cegueira branca’, para representar o egoísmo, a imparcialidade, o medo, a covardia, a raiva e outros sentimentos que cegam o ser humano e o levam à perdição.
O livro é um contundente combate à maneira desastrosa como se guia o mundo, sob as rédeas de um capitalismo brutal, que tem como real e grande mérito o acúmulo desembestado de riqueza nas mãos de uns poucos, enquanto majoritárias parcelas da humanidade são submetidas à miséria, à fome, à morte precoce.
José Saramago
Saramago vai fundo na questão, sem subterfúgio nem piedade: “É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade.”
Pergunte a si mesmo: até que ponto aguentaremos a violência, os roubos, a tirania como situações normais? Até quando seremos passivos diante da fome alheia? Até quando nossos braços ficarão cruzados sabendo que nossas crianças estão sendo abusadas e maltratadas? Até quando aguentaremos relacionamentos abusivos dentro da própria casa? “Quantos cegos serão precisos para fazer uma cegueira?”.
“Por que cegamos, não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão. Queres que te diga o que penso, diz, “Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, cegos que veem, cegos que vendo, não veem.”
Recentemente, numa entrevista para falar sobre seu livro “Extremo”, o filósofo italiano Franco Berardi, fazendo coro ao vigoroso alerta de José Saramago, afirmou que “o capitalismo ainda está no poder, mas está morto”.
Ele atiça sua crítica e sua visão do mundo pós-pandemia com uma advertência: “Estamos perto do fim. E desta vez, não estamos brincando. De duas, uma, se soubermos articular a solidariedade social, será o fim do capitalismo. Caso contrário, será o fim da humanidade. Da humanidade como um valor compartilhado, como sensibilidade, como inteligência e compreensão, mas também como espécie: o fim do animal humano na Terra.”
“Extremo”, de Franco Berardi, já foi lançado no Brasil, valendo muito a pena a leitura, para uma compreensão razoável do que ele e Saramago, dentre muitos pensadores, têm a nos dizer sobre um modelo capitalista cruel, que vem somando injustiça e miséria pelo mundo afora, aprofundando um fosso social de dimensões incalculáveis.
Berardi proclama que a civilização humana não tem saída no contexto atual, pois a economia ancorada na exploração extrativista de recursos naturais, atingiu o limite. “Nós nem estamos vivendo mais. Nós estamos, espiritual e fisicamente, morrendo todo dia. Portanto, veja, eu sou hiperbólico. Mas a realidade também é. Tem saída? Não sei. O que sei é que os últimos 40 anos de neoliberalismo foram marcados por privatizações, pobreza, desiguldade e devastação do planeta.”
O mundo precisa mudar. E mudar, para ele, implica aceitar duas condições. Primeiro, parar de almejar crescimento ilimitado, mas sim a redistribuição de riqueza. “Por que queremos continuar crescendo a economia, expandindo às custas da exploração da natureza e do braço humano? É preciso pensar, na verdade, em frear a desigualdade, redistribuindo riqueza. Direcionar o conhecimento, ciência e tecnologia para o bem social, e não mais para o lucro.